corrupção da linguagem é parte essencial da opressão política
A PERMANÊNCIA DE GEORGE ORWELL
por Timothy Garton Ash
Por que ainda deveríamos ler George Orwell
(1903-1950) sobre assuntos políticos? Até
1989 a resposta era clara. Ele foi o escritor que
captou a essência do totalitarismo. Em todos
os países da Europa sob regime comunista, as pessoas
me mostravam suas surradas cópias clandestinas de "A
Revolução dos Bichos" ou de "1984" e perguntavam:
"Como ele sabia?".
Certamente o mundo de "1984" terminou em 1989. Os
regimes orwellianos persistiam em alguns países longínquos, como Coréia do Norte, e o comunismo sobrevivia, de forma atenuada, na China. Mas os três dragões
contra os quais Orwell lutou com todas as suas forças
-o imperialismo europeu, em especial o britânico; o
fascismo, fosse italiano, alemão ou espanhol; e o comunismo, que não se deve confundir com o socialismo democrático, em que o próprio Orwell acreditava- estavam mortos ou mortalmente enfraquecidos. Quarenta
anos após a sua morte, dolorosa e precoce, George Orwell venceu.
Adjetivo e substantivo
Então, que necessidade
temos de Orwell? Uma resposta é que o deveríamos ler
pelo impacto histórico que teve. George Orwell foi o escritor político mais influente do século 20. É uma afirmação ousada, mas quem poderia competir com ele?
Entre os novelistas, talvez Alexander Soljenítsin ou Albert Camus; entre os dramaturgos, Bertolt Brecht. Ou
talvez algum filósofo, como Karl Popper, Friedrich von
Hayek, Raymond Aron ou Hannah Arendt? Ou o novelista, dramaturgo e filósofo Jean-Paul Sartre, ao qual Orwell chamava em particular de "uma bolsa de ar"? Se os
tomarmos um a um, descobriremos que seu impacto
individual foi mais limitado, quanto à duração no tempo e ao âmbito geográfico, do que o desse antiquado e
efêmero homem de letras inglês.
A familiaridade em todo o mundo com a palavra "orwelliano" é prova de sua influência. Usa-se "orwelliano" como adjetivo pejorativo, para evocar o terror totalitário, a falsificação da história por meio da mentira organizada pelos Estados e, de modo mais licencioso,
qualquer exemplo desagradável de repressão ou manipulação. Como substantivo, utiliza-se para denominar
um admirador ou seguidor consciente de sua obra.
Ocasionalmente se emprega como adjetivo elogioso,
significando algo como "que exibe franca honestidade
intelectual, como Orwell". Muito poucos escritores conseguiram esse duplo tributo de ser ao mesmo tempo adjetivo e substantivo.
Nos lugares onde imperavam ditaduras totalitárias, os
habitantes sentiam que o autor era um deles. A poeta
russa Natalia Gorbanievskaia comentou comigo certa
vez que George Orwell era um europeu do Leste. Na
verdade ele foi um escritor inglês que nem sequer se
aproximou da Europa Oriental. Seus conhecimentos do
mundo comunista derivavam basicamente de leituras.
Três experiências pessoais transformaram sua maneira de pensar. Em primeiro lugar, como policial imperial
britânico durante cinco anos de formação na Birmânia,
ele mesmo foi funcionário de um regime opressor, embora não totalitário. Quando abandonou esse posto, havia adquirido para toda a vida não apenas um ódio ao
imperialismo, mas também uma profunda percepção
da psicologia do opressor, que desenvolve já em dois
clássicos ensaios iniciais, "O Enforcado" e "Disparando
contra um Elefante" (há uma ironia bastante evidente
no fato de que a Birmânia pós-colonial seja, no momento em que escrevo estas linhas, um dos poucos regimes
orwellianos que ainda restam no mundo).
Posteriormente ele viveria entre os "down-and-outs",
os pobres, na Inglaterra e em Paris. Dessa maneira conheceu em primeira mão a humilhante falta de liberdade que implica a pobreza.
Por último, a Guerra Civil Espanhola (1936-39). Para
George Orwell, a Espanha significou a experiência de
lutar contra o fascismo e de sentir uma bala atravessando-lhe a garganta. Mas ainda mais importante foi a revelação do terror e da duplicidade comunista que os
russos praticavam, já que ele e seus camaradas das milícias marxistas heterodoxas do Partido Operário de Unificação Marxista (Poum) eram perseguidos pelas ruas
de Barcelona pelos comunistas, que se supunham serem seus aliados.
Sobre o agente russo em Barcelona encarregado de difamar o Poum como traidores trotskistas franquistas,
Orwell escreveu em "Homenagem à Catalunha" (no
Brasil saiu pela ed. Globo como "Lutando na Espanha"): "Foi a primeira vez que conheci um homem cuja
profissão era mentir, a menos que contemos os jornalistas". O comentário mordaz é próprio de seu típico humor negro.
Reflete assim mesmo sua indignação pelo modo como toda a imprensa britânica de esquerda estava falseando certos acontecimentos que ele havia visto com
seus próprios olhos. Como afirma em seu ensaio de
1946, "Por Que Escrevo", depois da Espanha soube onde se encontrava. Embora houvesse usado antes o pseudônimo de George Orwell, em lugar de seu próprio nome, Eric Blair, foi a partir da Espanha que se transformou realmente em Orwell. Cada linha do que escreveu
teria a partir de então uma intenção política. O imperialismo e o fascismo continuaram sendo dois alvos importantes de sua enorme cólera.
Sátira swiftiana
Mas seu principal inimigo seria a
cegueira ou desonestidade intelectual daqueles que no
Ocidente apoiavam ou perdoavam o comunismo stalinista, mais ainda quando a União Soviética se transformou durante a Segunda Guerra em aliado do Ocidente
contra Hitler. Foi então que ele se sentou para escrever
uma sátira swiftiana sobre a Rússia stalinista, com os
comunistas representados pelos porcos de uma fazenda
dirigida por animais. "Estar disposto a criticar a Rússia
e Stálin é a prova da honestidade intelectual", escreveu
em agosto de 1944.
A negativa de vários editores britânicos em publicar
"A Revolução dos Bichos", porque não queriam criticar
o heróico aliado britânico durante a guerra, era uma
mostra do que se aproximava. Quando finalmente foi
publicado no Reino Unido, em 1945, e mais tarde nos
Estados Unidos, em 1946, o livro foi um acontecimento
literário e ajudou a abrir os olhos do Ocidente de língua
inglesa sobre a verdadeira natureza do regime soviético.
Isso poderia se denominar o efeito Orwell (a França
teve que esperar 30 anos por seu efeito Soljenítsin). O
romance "1984", com sua antiutopia mais generalizada,
se transformou em outro texto determinante da Guerra
Fria. Não é casualidade que o primeiro uso da expressão
Guerra Fria anotado pelo "Oxford English Dictionary"
venha de um artigo de Orwell.
Resumindo, ele estava mais memorável e influentemente certo do que qualquer outro -e também antes
que todos- sobre a maior ameaça política da segunda
metade do século 20 assim como em relação aos dois
grandes horrores da primeira metade. Mas esses monstros morreram ou dão seus últimos estertores. Dizer
"deve-se lê-lo porque teve grande importância no passado" não atrairá novos leitores para Orwell na mesma
medida em que minha geração se sentiu conquistada de
forma irresistível pela coleção original de quatro volumes, publicada pela editora Penguin em 1970, "Collected Essays - Journalism and Letters".
Por sorte há uma resposta mais convincente para a
pergunta sobre por que deveríamos ler Orwell no século
21. É que ele continua sendo um escritor e um político
exemplar. Ambos os significados de "exemplar" são válidos. É um modelo de como fazê-lo bem, mas também
é um exemplo -deliberado, tímido e autocrítico- de
sua dificuldade.
Em "Por Que Escrevo" ele diz que seu objetivo, depois
da Espanha, foi "transformar a escrita política em arte".
Com "A Revolução dos Bichos" ele o conseguiu totalmente. Como trabalho literário, é muito mais bem elaborado que "1984", obra desfigurada pelo melodrama,
as "longeurs" e a redação áspera de um homem à beira
da morte. Em sua "encantadora pequena história", forma artística e conteúdo político se encaixam perfeitamente, em parte porque estão tão absurdamente emparelhados. O que poderia haver de mais distante do stalinismo de Moscou do que uma fazenda inglesa?
Vida no campo
Orwell se esforçou muito para melhorar sua prosa. Um de seus primeiros trabalhos mereceu o amável comentário da crítica de que ele escrevia
"como uma vaca com uma espingarda". Em "A Revolução dos Bichos" ele escreve maravilhosamente sobre
coisas que realmente conhece. É apaixonado pelo campo inglês, onde viveu nos finais dos anos 30, ao abrigo
de uma loja no povoado, uma cabra e um caderno. "A
Revolução dos Bichos" transborda desde as primeiras
páginas detalhes físicos da vida no campo, observados
amorosamente. Mas então, da boca do porco Mayor,
surge de repente uma perfeita paródia de um discurso
comunista: é o fruto das muitas horas que Orwell havia
passado estudando detidamente os panfletos políticos
que colecionava. Só ele possuía essa peculiar combinação de habilidades. Só Orwell sabia ordenhar uma cabra
e estocar um revisionista.
As características e as mudanças de seu regime animal
seguem fielmente a decomposição da Revolução Russa
até a tirania. Não há ambiguidade: o porco Napoleão é
Stálin, o porco Snowball é Trótski. Segundo indica Peter
Davison, no último momento Orwell chega a mudar um detalhe a favor de Napoleão, depois de inteirar-se
por um polonês sobrevivente do gulag de que afinal Stálin havia inspirado seu povo, permanecendo em Moscou durante o avanço alemão. A trama de suas primeiras novelas era frequentemente pobre. Nessa, a história
lhe proporciona o argumento perfeito.
Também há seu humor, uma parte subestimada do
áspero encanto de Orwell (pouco depois de receber um
tiro no pescoço na Espanha, seu oficial informava:
"Respiração absolutamente regular. Senso de humor
intacto"). Quando os animais tomaram a fazenda, "pegaram uns presuntos que estavam pendurados na cozinha e os enterraram".
Na manhã seguinte, à primeira bebedeira de uísque
dos porcos, Orwell faz o propagandista Squealer comunicar aos outros animais que "o camarada Napoleão está morrendo". Qualquer um que se lembre de sua primeira ressaca saberá como ele se sentia. E, por último,
temos a frase engenhosa, perfeita e profundamente séria ao mesmo tempo: "Todos os animais são iguais, mas
alguns animais são mais iguais que outros".
Afinal "A Revolução dos Bichos" vai muito além de
seu motivo original. Transforma-se em uma sátira
atemporal centrada na tragicomédia da política em geral, isto é, sempre e em qualquer lugar, tragicomédia da
corrupção pelo poder. Essa habilidade de ir do particular ao universal também caracteriza seus ensaios, gênero em que George Orwell se deu melhor quando tratou
de política.
O que mais o aborrece, talvez ainda mais que a violência ou a tirania, é a falta de honestidade. Movendo-se na
fronteira entre literatura e política, como uma sentinela
da moralidade, pode reconhecer uma dupla moral a 500
metros e sob luz fraca. Como é que um parlamentar
"tory" (do Partido Conservador britânico) reclama liberdade para a Polônia enquanto guarda silêncio sobre
a Índia? O sentinela Orwell dispara em seguida.
O moralista George Orwell é fascinado pela busca não
apenas da verdade, mas das verdades mais complicadas
e difíceis. Começa em um de seus primeiros trabalhos,
"Disparando contra um Elefante", em que afirma categoricamente que o Império Britânico está morrendo e
depois acrescenta que é "muito melhor que os impérios
mais jovens que o irão suplantar". Examinando detidamente a obra de Salvador Dalí, comenta que "algo que é
degenerado moralmente pode ser correto do ponto de
vista estético". Então, típico dele, vai além e insiste que
deveríamos ser capazes de dizer "este é um bom livro
ou esta é uma boa pintura -e deveriam ser queimados
pelo verdugo público". Às vezes parece sentir certo deleite masoquista ao enfrentar verdades desagradáveis.
Não é que suas apreciações políticas fossem sempre
acertadas. Eileen, sua viva e perspicaz mulher, escreveu
à sua irmã que o marido conservava "uma extraordinária simplicidade política". Em sua obra há juízos equivocados que surpreendem. Chama a atenção que, no
princípio, ele repita a frase comunista de que "fascismo
e capitalismo são no fundo a mesma coisa". Orwell se
opôs a lutar contra Hitler até meados de 1939, para acabar mudando de posição. Em "O Leão e o Unicórnio",
seu opúsculo em tempos de guerra sobre "socialismo e
o gênio inglês", propunha a nacionalização "da terra,
das minas, das estradas de ferro, dos bancos e das principais indústrias". Ao que parece, nunca admitiu claramente um vínculo entre propriedade privada e liberdade individual. Nesse sentido, pelo menos, foi um socialista de seu tempo.
Exagero escandaloso
Orwell foi um escritor muito inglês, e pensamos no comedimento como uma qualidade muito inglesa. Mas sua especialidade é o exagero
escandaloso: "Nenhum verdadeiro revolucionário jamais foi um internacionalista", "todos os partidos de
esquerda dos países mais industrializados são no fundo
uma farsa", "um humanitário é sempre um hipócrita".
Como observou V.S. Pritchett ao resenhar "O Leão e o
Unicórnio", ele "é capaz de exagerar com a simplicidade e a inocência de um selvagem". Mas isso é próprio
dos escritores satíricos. Evelyn Waugh, no outro extremo do espectro político, fazia o mesmo (os grandes resmungões ingleses da esquerda e da direita tinham um
cauteloso, mas genuíno, respeito mútuo). De modo que
esse ponto fraco de seus trabalhos não-narrativos é um
dos pontos fortes de sua narrativa.
Tanto sua vida como sua obra são um bom exemplo
das exigências do compromisso político. Em "Escritores e Leviatã", Orwell descreve o dilema político dos escritores: "Ver a necessidade do compromisso político e
ver ao mesmo tempo que sujo e degradante ele é". Depois de um curto período em que foi membro do Partido Trabalhista Independente, Orwell chega à conclusão
de que "o escritor só pode se manter honesto se se afastar dos rótulos partidários". De novo a palavra-chave:
honesto. Sem dúvida, se propõe e chega a ser vice-presidente de uma organização apartidária chamada Freedom Defence Committee, em defesa da liberdade contra o imperialismo e o fascismo, é claro, mas agora também, sobretudo, contra o comunismo.
Também há seu humor, uma parte subestimada do áspero encanto de Orwell (pouco depois de receber um tiro no pescoço na Espanha, seu oficial informava: "Respiração absolutamen te regular. Senso de humor intacto") |
Leiam Orwell e compreenderão que alguma coisa feia deve se esconder por trás do eufemismo usado pelo porta-voz da Otan (aliança militar ocidental) durante a Guerra de Kosovo: "Danos colaterais" (significando mortos civis inocentes) |